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26 de mar. de 2009

AUTO DAS BARCAS (CANTO VII)


Eu que sou o pior de todos esses cúmplices de travessia...
Que sempre fui o mais dotado sem nenhum proveito...
Que nunca recebi mais nada além de cumprimentos...
Que carrego as seqüelas de todas as angústias
e mais aquelas que o destino me traz só por costume...
Eu que mais nada sei na vida a não ser fazer poemas...
Que desisto de tudo no meio do caminho...
Que não tenho pudor nos pensamentos...
Que não reclamo de mais nada por mero comodismo...
Que só me compadeço da miséria alheia quando nada tenho...
Eu que às vezes sequer tenho vergonha
de desejar o prato-feito dos desabrigados da enchente...
Que sou retardatário só por causa de objetos esquecidos...
Que sei que o beijo da chegada não adoça a boca amarga de meus filhos...
Que minto em casa como se fosse líder de algum piquete
quando sequer participei da greve...
Eu que nem mesmo estendo a mão aos companheiros
por receio doentio de pegar um vírus,
mas carrego para casa na sola do sapato
o catarro em que pisei na embarcação...

Sou único, sou múltiplo,
sou todos esses tontos navegantes...
Nossa Senhora da Ilha da Conceição!...


Afonso Estebanez

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